segunda-feira, 27 de agosto de 2012

PRIMEIRA PÁGINA: VITÓRIO PEREIRA RESENDE




Encontrei, hoje, na internet, fotos de dezenas de embalagens de cigarro antigas. Marcas que há muito saíram do mercado. Não sou mais fumante, parei há mais de vinte anos. No entanto, ao ver essas fotos, fiquei literalmente siderado. Porque elas me jogaram direto naquele escaninho de memória onde guardo minha infância. Lembrei, e muito,  um amigo querido: Vitório. Nome completo: Vitório Pereira Resende.

ALBANY





Vitório morreu há pouco mais de dois anos. Num dia de agosto.  Coração. Tenho poucos detalhes de seu falecimento. Só sei que, quando soube, chorei. Chorei muito. E choro até hoje, quando dele me lembro. Perdi não um amigo, mas um irmão que eu escolhi para ser meu irmão. O que conta muito mais do que os irmãos naturais.

ALEXANDRIA




Conhecemo-nos no primeiro ano do Grupo Escolar Álvaro Botelho, em Lavras, Minas Gerais, tendo ambos sete anos de vida. Ele era apenas seis meses mais velho que eu. Ficamos amigos. Amigos inseparáveis a partir daí. Inseparáveis por mais de dez anos, o tempo de nossa infância e juventude em Lavras.

AMERICAN CLUB




Depois, a vida nos levou um para cada lado. Sem destruir, no entanto, a amizade que nos unia. Tivemos outros longos momentos de convivência, mas na maioria do tempo eram intermitentes os nossos encontros. Vigiávamo-nos um ao outro a distância. Sempre.

ASTORIA




O que vou relatar, a partir de agora, são momentos de convivência durante o período áureo de nossa amizade, em Lavras, enquanto crescíamos e descobríamos juntos a vida e seus tropeços, a vida e suas alegrias, a vida e suas surpresas.

ATHENAS




Então, começo com o despertador das lembranças quase perdidas: os maços de cigarros. Tínhamos, eu e ele, naquela época, mania de colecionar pequenas coisas ou coisas estranhas. Como maços de cigarros vazios, que encontrávamos pelas ruas. Formamos com eles um álbum, que era a nossa paixão.

BELMONT





Claro, éramos crianças, nem pensávamos em fumar. Mas as estampas dos maços de cigarros nos atraíam e nos faziam viajar, por criações de nossa imaginação, a lugares de que nunca ouvíramos falar. As palavras e expressões que cada marca continha despertavam em nossos sentidos  sonoridades inauditas. Achar um novo maço era sempre uma festa.

CAIRO




As fotos que acompanharão essas lembranças - breves, mas intensas - correspondem a quase todos os maços que tínhamos em nosso álbum. Por ironia, não encontrei, ainda, uma única foto de um maço que nos fez viajar para muito longe: os cigarros Bagdad. Lembro que havia uma torre oriental, um domo, sei lá. Ou será que que eles nunca existiram?

CALYPSO





O álbum de coleção de maços de cigarros desapareceu. Disse-me o Vitório, uma vez, bem mais tarde, que estava com um amigo dele, em algum lugar de Minas Gerais, cujo nome nem mais me recordo. Não importa. Ele ressuscita agora, para iluminar minhas recordações e fazer-me falar de meu amigo, depois de dois anos que...

CAMBRIDGE




Dois anos sem ele. E parece que foi ontem que sentávamos próximos nas carteiras já antigas do velho Grupo Escolar Álvaro Botelho, com nossas calças curtas, nossas merendeiras e o caderno de caligrafia, onde tentávamos reproduzir as primeiras letras do antigo  processo de alfabetização que partia do beabá, do "vovô viu a uva" e outras pérolas.

CAPORAL AMARELINHO





Esse grupo escolar ficava (ainda fica...) na praça Doutor Jorge, que chamávamos, nem sei bem por quê, de "praça dos cachorros". Do outro lado, ficava minha casa, num terreno enorme, de mais de cem metros de comprimento. A velha e ruinosa casa fora construída bem no meio desse terreno, que era em declive. De modo que havia uma longa subida da casa até a rua. E uma longa descida, da casa até a outra rua, a de baixo, que foram ambos - a praça e as ruas "de baixo" - palco de muitas de nossas travessuras.

CARUSO LUXO




Sempre que ouvia uma grande algazarra na saída das aulas, minha mãe subia correndo até a praça, pois sabia que estávamos aprontando alguma: geralmente uma briga com meninos de outras ruas, de outras turmas, em guerras previamente combinadas, das quais saíamos muitas vezes com escoriações leves e o coração mais acelerado pela aventura. Nada muito grave.

CASABLANCA




O imenso quintal de minha casa (hoje uma rua a ligar a praça a algumas ruas "de baixo") foi palco de inúmeras transformações provocadas por nossa imaginação ou por nossas necessidades de aventuras e de brincadeiras. Entre a frente da casa e o barranco onde se encrava uma escada de pedra, à direita de quem sobe, tínhamos um pequeno campo de futebol, prejudicado pela existência de um pé de ora-pro-nóbis que produzia umas sementes espinhudas que feriam nossos pés.

CHESTERFIELD



Nesse campinho, jogamos nossas primeiras peladas com bola de meia. Nele havia um placar onde eu e o Vitório escrevemos o nome de nosso time - qual? nem sei mais! - e "visitantes". Quem eram os visitantes? Moleques que formavam pequenos times adversários, nas longas pelejas em que saíam maltratadas nossas canelas, pelejas disputadas até que se desfizesse a bola de meia. Substituída no dia seguinte por outra. Meias e retalhos fornecidos por minha mãe, costureira, e minha irmã, já moça.


COIMBRA





Também nesse campinho improvisado disputávamos campeonatos de bola de gude, quando a temporada era de bola de gude. Porque, sim, havia temporadas para cada tipo de brincadeira: de bola de gude, de futebol, de papagaios (ou pipas, ou... sei lá quantos nomes há...), de pique-esconde, de futebol de botão, de "bafo" (disputa de figurinhas com a mão em concha sobre uma pilha de cromos)...

COLUMBIA




Se de um lado do campinho havia o nosso maior adversário, o pé de ora-pro-nóbis, do outro havia um barranco sobre o qual se plantara uma cerca viva de mandacarus que floresciam uma vez ao ano, uma flor branca e perfumada que parecia uma tocha. 

COLYSEU






Aranhas. Nesse barranco, sob os mandacarus, elas faziam tocas redondas e fundas, cobertas com uma "tampa" que era uma mistura de terra e teia. Removíamos aquela tampa, cuspíamos na ponta de um longo capim e cutucávamos a aranha em sua toca, até que ela se agarrava ao capim e era puxada para fora. Duas ou três aranhas grandes e pretas faziam nossa diversão por horas, vendo-as brigar.







CONSUL






A frente da velha casa tinha uma horrorosa pintura verde. Entre as duas janelas, pintei uma vez o número 246, com grande esforço, o mais alto possível, o desenho irregular, algo bem próximo do pavoroso. Muitos anos depois, eu e o Vitório demos muita risada ao constatar que eu ficara na ponta dos pés para desenhar um número que mal atingia a nossa barriga. Éramos, sim, muito pequenos.

CONTINENTAL





Pequenos e pobres. Muito pobres. Ambos. Andamos descalços quase a infância inteira, até os quatorze anos ou mais. E se eu era pobre, filho de pai ausente - minha mãe me criou sozinha, filho caçula temporão (mais de doze anos me separava do irmão acima de mim) - Vitório era ainda mais pobre: o pai, carpinteiro, devia ganhar salário de fome, para criar na fome a família que crescia. 

CUBANOS





Não nos queixemos agora, no entanto, já que não nos queixávamos então, inconscientes de nossa situação, meninos ainda que só queriam se divertir nos quintais imensos que nos cercavam, com suas jabuticabeiras, mangueiras, abacateiros... Lembremos apenas, sabendo que lembrar não é preciso, preciso era viver, naqueles tempos.

CIGARRO DAS AMÉRICAS






A conquista das árvores. Havia em meu imenso quintal três grandes jabuticabeiras, uma das quais era a que fazíamos de uma espécie de carrossel ao contrário. Seus galhos amplos e abertos permitiam que, lá de cima, pudéssemos rodeá-la pulando de galho em galho, num caminho que descobrimos e que nos encantava. 


DOURADINHO




Achávamos que reproduzíamos a vida arbórea do Tarzan, cujas aventuras líamos sofregamente nos livros da coleção Terramarear, com suas capas coloridas e sugestivas. Tarzan povoou nossa imaginação, marcou nosso crescimento, cresceu conosco.

EF






Essas jabuticabeiras... floresciam no meio do ano e davam cargas fantásticas de frutos deliciosos, que cobriam seu tronco até a raiz. E isso gerou algo muito engraçado para nós: uma vez fiz o meu cão - um vira-latas fogoso - comer uma jabuticaba. Ele gostou tanto, que foi ao pé e comeu todas que alcançou. No dia seguinte, eu e o Vitório nos divertimos ao vê-lo comer capim - muito capim - para aliviar a dor de barriga.




EGLE




As árvores faziam parte de nossa vida. Davam frutos, abrigo e motivos de brincadeiras. A grande mangueira foi uma das últimas a ser conquistada. Um pé de manga-rosa que pontificava no quintal. Do alto de seus galhos, podíamos ver uma grande extensão do vale abaixo, assim como do morro já pontilhado de casinhas de chaminés fumegantes do bairro da Nova Lavras. Ficávamos horas lá em cima. Olhando a paisagem, conversando, dando risada. No sopé de seu enorme tronco, construímos, uma vez, com mandacarus, um laboratório... um laboratórios de misturas improváveis, de que nem bom falar muito... Melecas de moleques.

ELDORADO




Batalhas de moleques. Não se restringiam às pequenas brigas no final das aulas. Tínhamos uma rusga especial com alguns moleques da rua de baixo. Nem sei por quê. Apenas não nos suportávamos. Eram os "inimigos", numa eterna batalha por território. Ou apenas pelo prazer de brigar, como nos gibis e nos filmes de mocinho e bandido. E, claro, nós nos considerávamos os mocinhos...

ELMO COM PONTEIRA





Estripulias de que nos arrependemos depois. Uma vez, numa dessas batalhas com a turma da rua de baixo, geralmente travadas com pedras arremessadas com as mãos, usei uma arma mais letal, um estilingue, com que abri a cabeça de um dos moleques. O sangue derramado deu fim à luta e, depois, a bronca dos adultos arrefeceu as hostilidades.

ELMO





O Vitório era muito criativo. E hábil. Uma vez construiu no quintal do fundo, que era um longo declive, uma sequência de canais e pequenos córregos que captavam a água servida e despejavam-na em  aquedutos feitos de bambus que a despejavam em rodas de moinho devidamente cortadas de pedaços de mandacaru, que passavam a girar... Foi nossa diversão por vários meses.

EVEREST





Gibis. Foi outra grande paixão. Eu e o Vitório, com muita dificuldade, conseguimos juntar uma pequena coleção de Roy Rogers, Hopalong Cassidy, Príncipe Valente, Fantasma, Tio Patinhas, Mandrake, Capitão Marvel e outros tantos  e montamos uma estante-exposição no meu quarto. Era o nosso orgulho. Gostávamos de exibi-la a todos os amigos.

FARRAPOS




Naquele tempo, as casas ficavam abertas, estando presentes ou não os donos. Todos se respeitavam. Não havia roubos. No entanto, furtaram nossa coleção de gibis. Foi um dia muito triste em nossa vida. Nunca mais tivemos ânimo (nem dinheiro) para repor o que fora roubado ou para começar uma nova coleção. Foi o fim de nosso faroeste e de nosso entusiasmo por heróis, super-heróis e filhos do Walt Disney.

FILIGRANA





O ladrão. Imbuídos dos mais profundos conhecimentos da arte investigatória - a partir da leitura dos gibis - lá fomos eu e o Vitório examinar a cena do crime - armados de uma pequena lupa. E não é que encontramos rastros do ladrão? Pegadas muito claras no chão indicaram-nos que o larápio só podia ter sido o Agostinho, um garoto que tinha um defeito na perna que o levava a pisar com somente a ponta de um dos pés. E ele era muito, muito mais pobre do que nós. Não tivemos coragem de ir atrás dele ou denunciá-lo para seus pais. Foram-se os gibis, ficava a comiseração.

FINESSE





Havia no fundo do vale um ribeirão de águas não muito confiáveis. Mas havia algo ás suas margens que nos fascinava: um barranco de terra argilosa, bem mais alto que nós - naquela época quase tudo era mais alto do que nós. A terra argilosa desenhava sulcos coloridos que iam do vermelho ocre ao branco da areia. Chamávamos aquele barranco de mina, onde escavávamos pequenas cavernas para guardar "tesouros".



FIO DE OURO





Mais adiante, já nas vizinhanças da velha ESAL - Escola Superior de Agricultura (esse o velho nome da UFLA, Escola Federal de Lavras) - um pouco antes dos trilhos da RMV (Rede Mineira de Viação, também um nome antigo, muito antigo), havia um descampado margeando o barranco que o separava dos trilhos. Era a "terrinha", nome tirado da cor forte da terra. Ali a molecada de toda a vizinhança se reunia à tarde para jogar futebol. E aquele campo terroso era bem maior que o nosso campinho caseiro.

FULGOR





Na "terrinha", o jogo ia até não mais se enxergar a bola (que não era mais de meia, mas de capotão - dura de chutar, dura de cabecear). Estranhamente, não me lembro se o Vitório era bom de bola. Melhor que eu, com certeza, pois eu só jogava na zaga, por ser alto e ter as pernas compridas. E possivelmente por não ter grande intimidade assim com a redonda. E tinha o apelido de "pernalonga", ou simplesmente "perna", o que não era nada lisonjeiro.

GLOBO





Quando já a noite caía e nos impedia de ver a bola, ou até mesmo os demais jogadores, voltávamos para casa, sujos  de terra vermelha até o último fio de cabelo. Muitas vezes, o Vitório, depois do banho, passava em casa e dividíamos a deliciosa sopa de minha mãe.

HAWAII




Como era figurinha carimbada nas refeições lá de casa, me lembro da primeira vez que o Vitório provou margarina, uma extravagância de minha mãe, já que até mesmo esse produto podia ser proibitivo para nossas condições materiais. Ele achou a coisa melhor do mundo aquele pão com margarina. E todas as vezes, absolutamente todas, que eu ainda hoje passo margarina do pão - às vezes preferencialmente à manteiga - me lembro do Vitório.

HOLLYWOOD




Figurinhas. Eram uma das nossas paixões. Com muita dificuldade - apesar de serem baratos os cromos vendidos naquela época - colecionamos vários álbuns. Um deles povoa até hoje a minha imaginação: as aventuras do Capitão Nemo, na saga de Vinte Mil Léguas Submarinas, baseada em Jules Verne. Um deslumbre aquele submarino; algo inimaginável o fundo do mar; assustadores os monstros, principalmente aquele polvo gigante!

HUDSON








Do grupo escolar guardo o cheiro. Muitas e muitas vezes, anos depois, o Vitório relembrou o cheiro do grupo escolar. Dizia que se se fizesse um perfume que sintetizasse o cheiro de um grupo escolar, ficaria rico. Porque o menino que dividia comigo as estripulias e as dificuldades de estudo, naqueles primeiros anos, ainda não era o jovem e o homem saudosistas em que ele ia se transformar.

domingo, 26 de agosto de 2012

IMPERADOR





Uma coisa nos deliciava, especialmente, no grupo: quando faltava a professora e tínhamos aula com a substituta, quase sempre dona Joana. Ela não dava matéria, ou se o fazia, dedicava um bom tempo à contação de histórias. Histórias maravilhosas que não tinham começo, não tinham fim, mas tinham o condão de nos deixar colados e calados nas carteiras, numa viagem de alumbramentos.

KEMPER





Na saída da escola: um dos meninos, o Baltazar, era o fortão da turma. Ganhava todas as brigas. E lá estava ele a desafiar a todos. Então, saíamos eu, o Vitório e o Paulinho, o mais franzino e "nerd" da turma (se nerd houvesse naquele tempo). Vendo a briga, virou o Paulinho para nós: "Vamos brigar também?" Tirou a canequinha do cinto, pôs os livros no chão e, todo lampeiro, pulou nas costas do Baltazar. Este só olhou para trás, deu-lhe um balão por cima da cabeça e deixou-o estatelado na grama... para nossa diversão. Assim era o Grupo Escolar.

LINCOLN



Na aula de aritmética, o Vitório fazia o exercício da tabuada com grande rapidez, beijando a mão fechada e escrevendo os números. Eu, que não tinha estudado aquilo, me desesperava e pedia ajuda. Mas, que nada: ele só dizia que os números estavam na mão, e continuava a escrever correta e precisamente. Precisava estudar mais!


LUIZ XV




Estripulias de que nos arrependemos - e muito! Um casal de namorados se agarrava num dos bancos da praça Dr. Jorge. Não sei por que motivo, eu e o Vitório fizemos a sacanagem de vir por trás da moita e dar-lhes um banho e depois saímos correndo. O rapaz foi-se queixar com meu tio, que tinha uma sapataria na frente. Levamos bronca, claro, mas soubemos depois que meu tio - um pândego! - também se divertiu muito, o sacana. 

LUXOR LAMINADO




Mês de agosto: aniversário do Instituto Gammon. Não estudamos lá, mas não saíamos de suas quadras e de seu campo de futebol, principalmente nas festas de aniversário, que envolviam muito esporte. O nosso esporte era conseguir vislumbrar a calcinha das garotas internas do Carlota Kemper, o outro colégio protestante, que tinham permissão para assistir, das arquibancadas, aos jogos mais importantes. A libido ficava a mil, mas era ver com os olhos e lamber com testa.

LUXOR




Por falar em Instituto Gammon, lembro o Vitório dando muita risada ao encontrar um de seus ilustres professores - o professor Sinval - que era muito baixinho, sentado num banco de uma repartição pública e...  balançando os pés, que não alcançavam o chão. O duro foi ouvi-lo contar para todos os amigos... e rir, rir muito!

MACEDONIA




Ainda em relação ao mesmo professor Sinval, dizia-se que ele adorava comer bunda de tanajura (içá), aquelas formigonas voadoras que aparecem no final do inverno. Isso, para nós, era motivo de espanto e de  muitos comentários, já que nossa percepção do que podia ser comestível era bastante limitada.

MAK




Por falar em professores, já no ginásio (estudávamos no Colégio Nossa Senhora Aparecida, que não existe mais), em classes diferentes, mas com os mesmos professores. E a um deles, por ser muito estranho e andar sempre com ternos surrados e um guarda-chuva na mão, gravata e ter uma postura curvada para frente, deu-lhe o Vitório (e se não foi ele, que me perdoe), o apelido de Tatu. Professor Tatu. Apelido que pegou e, por isso, nem me lembro mais o nome do distinto...

MARROCOS






Estripulias de que não nos arrependemos, mas nas quais quase nos demos mal. Uma delas diz respeito ainda às famigeradas jabuticabas. Não satisfeitos de termos ao nosso dispor as jabuticabeiras de minha casa, eu e o Vitório, uma vez, não resistimos e pulamos para o quintal vizinho, onde havia também frutos maduros que ninguém colhia. Acontece que nesse terreno havia uma pocilga e todo fim de tarde ia lá um sujeito com um grande balde de lavagem para tratar dos porcos, limpar tudo etc. Distraímo-nos, eu e o Vitório, lá em cima e, quando percebemos, lá estava o cara - que nos viu, claro, e ficou puto da vida. Sem saber muito bem o que fazer, tratou dos porcos, limpou o chiqueiro... e nós lá cima, transidos, paralisados. Então, de repente, ele rosnou: - "Vou dar é uma coça n'oceis... " E começou a procurar um pedaço de pau. Despencamos lá de cima e, como um raio, passamos pela cerca de arame farpado, subimos correndo, passando por dentro de minha casa, onde minha mãe costurava, e fomos nos esconder nos arbustos da Praça Dr. Jorge.




MARYLAND





As cercas - sempre de arame farpado - não eram empecilhos para nós. E outra estripulia - essa até que foi uma grande bobagem - aconteceu uma vez no bairro que ficava no morro em frente à minha casa, no velho bairro da Nova Lavras. Eu e o Vitório andávamos por lá e nos desentendemos com um moleque. Desentendimento é o eufemismo para briga. E a mãe do menino entrou no meio e nos ameaçou. Já nos afastando da encrenca, resolvi, muito macho, xingar a fulana e soltei um alto e sonoro "rapariga"! A mulher subiu nas tamancas e saiu correndo atrás de nós com um pedaço de pau. Atravessemos mais uma vez como um raio a cerca de arame farpado, onde deixamos alguns retalhos de nossas camisas, e desabalamos para casa. Não sabíamos, naquela época, eu e o Vitório, que o termo "rapariga" podia ser tão ofensivo. Inocentes!

MASTER




Essas estripulias eram ainda no tempo do grupo escolar, quando usávamos calças curtas e éramos dois moleques endiabrados, a gozar a liberdade dos quintais, da rua, das brincadeiras e bobeiras de todo moleque do interior. Quantas vezes fui levar a marmita de minha irmã lá na fábrica onde ela trabalhava, e o Vitório ia comigo nessas excursões, quando a diversão inocente era um canteiro da planta que chamávamos "murcha-cadela", uma sensitiva cujas folhas miúdas se fechavam quando nós a tocávamos... Éramos, sim, inocentes...

MAUÁ




Para chegar até a fábrica onde minha irmã trabalhava, tínhamos de descer a avenida Pedro Sales que levava à Estação Ferroviária, uma longa ladeira. No caminho, do lado direito de quem desce, bem acima do nível da rua, o Instituto Gammon. E um enorme muro de arrimo, feito de pedras. Nos vãos desse muro, pequenas colmeias. Delas gostávamos de tirar a cera, com que fazíamos bolinhas. Nem sei para quê, mas era mais uma diversão bobinha de moleques...

MENTOLADOS




O Instituto Gammon, pelo seu tamanho, por sua importância na nossa vida, sempre rende boas lembranças. Uma das quais se refere aos medos do Vitório. Ao longo do muro da rua que levava à ESAL, também uma longa descida - Lavras é a cidade das ladeiras - havia enormes eucaliptos. A noite mal iluminada fazia parecer fantasmagóricas essas árvores. Como o Vitório era muito medroso, eu contava para ele que apareciam caixões de defuntos nas copas das árvores. Isso era corroborado - e fazia-o acreditar nessa peta - por uma fotografia de um amigo nosso.

MINEIROS




Galvão - era como o chamávamos - mostrou-nos uma vez uma foto de um lago existente no sítio de sua família. Do outro lado do lago, árvores imensas, em cuja copa as folhas e as sombras desenharam caprichosamente o rosto de uma mulher idosa. Dizia o Galvão que era o fantasma de sua avó. Eu achava bizarra aquela foto, mas o Vitório acreditava piamente na história e morria de medo, até das árvores do Instituto Gammon, à noite...